sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Até sempre, Mano Querido!

Partiu o último dos três grandes Pilares da minha infância e adolescência.
Primeiro, em 1987, sofri a primeira grande perda com a partida do meu querido Pai. Mais tarde, em 2009, menos precoce, foi a vez da minha Mãe nos deixar. Agora, no último dia de 2013, quando à família nada fazia prever semelhante desfecho - se ele até estava a melhorar -, foi o meu Mano querido que se foi embora.
A notícia chegou cruel, impiedosa. Que me perdoe o visado, mas cheguei a pensar que era engano. Não, não era à nossa família que queriam telefonar, só podia ser engano, era a família de outro doente que queriam contactar, provavelmente trocaram os contactos...
Mas, a severa realidade não se fez esperar, não havia qualquer engano, era mesmo o meu último grande Pilar, o último dos três grandes Pilares que estruturaram uma infância feliz e equilibrada, que acabava de desmoronar.
Por ter uma considerável diferença de idade em relação aos irmãos mais novos e ter começado a trabalhar cedo, mas, sobretudo, por ter um enorme carinho por crianças, o Mano proporcionava-nos pequenos luxos que a austeridade, que então parecia perene, tornava proibitivos a outras crianças. Desde os brinquedos às guloseimas, passando pelos frequentes e inesquecíveis serões lá em casa, com grupos de amigos, que juntavam as suas vozes plenas de juventude aos acordes das violas e guitarras, cuidadosamente afinadas pelo pai, que também integrava o grupo de "artistas", e enchiam de alegria as nossas vidas, ao imenso carinho e apoio que nos dava, tudo a minha memória regista como um tempo feliz em que também com a ajuda do Mano foi sendo construído o que hoje sou como Pessoa.
De tão honesto foi protagonista de um episódio que o pai, de vez em quando contava, num misto de brincadeira e orgulho. Dizia-nos que um dia o Mano, ainda criança, encontrou uma nota de vinte escudos na rua, num tempo em que vinte escudos era muito dinheiro, e, sabendo que, seguramente, alguém os tinha perdido, dirigiu-se à primeira pessoa que lhe apareceu à frente, um homem que, de selha à cabeça, vendia peixe, mas que vinha em sentido contrário, e perguntou-lhe se tinha perdido aquele dinheiro, ao que o homem rapidamente respondeu que sim, arrebatando-lhe os vinte escudos da mão. Só depois é que se apercebeu que, na ânsia de entregar o dinheiro ao dono o entregou a alguém que ainda nem sequer tinha passado no sítio onde encontrara o dinheiro.
Sofreu muito nos últimos meses da sua vida, não lidou bem com a doença, e a palavra "hospital" era o vocábulo que mais lhe feria os ouvidos, mesmo sabendo que só lá encontraria ajuda para debelar tamanho mal.
A verdade é que a doença revelou-se mais forte que todos. Do que o Mano, cujas forças não chegaram para derrotá-la, do que os médicos e enfermeiros e respetivos auxiliares que tudo fizeram para o ajudar a combater tamanho infortúnio, e do que a Família, principalmente a mulher e os filhos que com extrema dedicação o apoiaram incondicionalmente, cheios de esperança de que o pesadelo passaria.
Não passou, e no dia 31 de dezembro, por volta da hora do almoço, chegou a inexorável notícia, a que mais temíamos, mas a que menos esperávamos: Tinha acontecido, o Marido, o Pai, o Mano, foi-se embora, para sempre!
Até sempre, Mano! Obrigada por tudo o que foste para nós ao longo das nossas vidas!  

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Os novos planetas


Não, não venho falar de astronomia nem de corpos celestes, venho falar de planetas terrenos, mundanos, uma espécie que prolifera por todo o lado. São os oportunistas, que não conseguem viver sem as luzes da ribalta; mesmo sabendo que essas luzes brilham para um talento que não é seu, aproveitam-se da luz emanada dos valores de outros para poderem, eles próprios, brilhar.
Há dias dizia-me um Amigo que muito prezo:
"Antigamente só ocupavam os lugares cimeiros, lugares de destaque, quem tinha provas dadas e fosse uma referência nessa área; quem tinha algo para ensinar e enchesse de orgulho os seus congéneres, quem emprestasse o seu brilho, o brilho de uma carreira de sucesso, o brilho do seu valor, a uma classe ou a uma organização. Hoje, é precisamente o contrário; hoje, em regra, ocupam esses lugares não os que têm algo para ensinar, mas sim os que precisam do brilho da classe ou da organização que pretendem representar, para que possam, eles próprios, brilhar."
Nada mais bem observado! É vê-los, todos em bicos de pés, não vá dar-se o caso de não serem notados e, assim, correrem o risco de não serem chamados a ocupar o tão almejado poleiro.
É espantoso quão abrangente é o seu conhecimento, em qualquer área estão completamente à vontade, ainda que estejamos a falar de mudanças que podem rondar os cento e oitenta graus. Eles sabem tanto de comunicação social como sabem de estradas, sabem tanto de desporto como de finanças; é impossível enumerar todas as qualidades e capacidades que cada um destes planetas possui, tão global é o seu saber.

Mas se o destino lhes troca as voltas e, mau grado, não conseguirem concretizar o mui nobre desejo de servir a classe, a região, ou até mesmo a nação, não desmobilizam, põem-se logo em campo a ver onde é que aparece a próxima oportunidade para tentarem servir (se), pois que em tão bondosas almas mora o incontrolável impulso de partilhar o que é do próximo consigo próprios, nem que se esteja a falar apenas e só do fugaz perfume da fama.


domingo, 28 de fevereiro de 2010

Romance ingénue de duas linhas paralelas

Duas linhas paralelas
muito paralelamente
iam passando entre estrelas
fazendo o que estava escrito:
caminhando eternamente
de infinito a infinito.

Seguiam-se passo a passo
exactas e sempre a par
pois só num ponto do espaço
que ninguém sabe onde é
se podiam encontrar
falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha
uma delas certo dia
voltou-se para a outra linha
sorriu-lhe e disse-lhe assim:
“Deixa lá a geometria
e anda aqui para o pé de mim…”

Diz-lhe a outra: “Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar
temos de ir devagarinho
andando sempre a direito
cada qual no seu caminho!”

Não se dando por achada
fica na sua a primeira
e sorrindo amalandrada
pela calada, sem um grito
deita a mãozinha matreira
puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente
as duas a murmurar
olharam-se docemente
e sem fazerem perguntas
puseram-se a namorar
seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas
fica uma história banal
com linhas e entrelinhas
e uma moral convergente:
o infinito afinal
fica aqui ao pé da gente!

José Fanha, in Eu Sou Português Aqui

domingo, 14 de fevereiro de 2010

...


"Nunca me pesou o que de trágico se passasse na China. É decoração longínqua, ainda que a sangue e peste."

Fernando Pessoa, in O Livro do Desassossego

domingo, 20 de setembro de 2009

Registos


Aperta o punho com quanta força tem; lá dentro guarda ciosamente o sorriso que teima em querer fugir-lhe. Antípoda de outro sorriso, com quem já fez as delícias de um coração pungente, paleta de sensações que lhe percorrem os sentidos a cada lembrança retirada do baú dos sonhos idos.
Um sorriso de paz num coração em guerra, que crê cegos os que o observam e oculta o inconfessável.

Mas o silêncio, seu pior delator, faz deslizar sobre ele o manto da realidade, transforma a ilusão de uma primavera perene no horizonte cinza de um dia chuvoso; abre um fosso entre uma felicidade e outra. E, entre um olhar perdido além fronteiras e um sorriso que acaba por lhe desmaiar nos lábios, ficam apenas os registos para a posteridade.

sábado, 19 de setembro de 2009

Ainda... O Livro do Desassossego


"Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos..."

Fernando Pessoa

domingo, 13 de setembro de 2009

...


"Como todo o indivíduo de grande mobilidade mental, tenho um amor orgânico e fatal à fixação. Abomino a vida nova e o lugar desconhecido.
(...)
Ah, viagem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida.
(...)
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir."

Fernando Pessoa, in O Livro do Desassossego